quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Álbuns de Maioridade


Certos livros são excepcionais não apenas porque apresentam conteúdo interessante, mas porque a maneira como são escritos demanda um tipo específico de raciocínio do leitor.

A exposição do assunto segue a linha de pensamento do autor de tal modo que você passa a pensar daquele modo também ou, de qualquer forma, de um modo correlato, diferente do seu usual.

Pra mim a sensação, após leituras como essas, é a de que eu fiz um exercício movimentando outros músculos que eu nem sabia que tinha, e é como se isso me encorajasse a tentar novos gestos, em outras situações.

Eu nunca havia lido as transcrições das aulas do Foucault, apenas livros escritos por ele para serem lidos. E “O Governo de Si e dos Outros”, primeiro volume de um dos cursos que ele ministrou em 1983, provocou esse efeito em mim.

Acho que foi só por isso que cheguei a uma reflexão sobre certo tipo de álbum musical, que sempre identifiquei mas nunca fiz nenhuma reflexão pra delimitar. Pensei em chamá-lo de “álbum de maioridade”, mas talvez vocês encontrem um nome melhor.

Cheguei a essa definição quando estava cantarolando uma música do Kid Abelha, “A Fórmula do Amor”, e pensei “caramba, quanta música o Kid Abelha tem sobre o mesmo assunto – a inépcia nas relações amorosas adolescentes e pós-adolescentes”.

Não foi difícil partir para uma contextualização histórica: essas letras são da fase do Leone. Aí lembrei do primeiro álbum do Kid Abelha sem o Leone, e o quanto – apesar de gostar do Leone – apreciei a guinada que a banda tomou. O álbum é o “Tomate”.

Saindo dessas tramas autocentradas de adolescente, foi como se a banda tivesse alcançado a “maioridade” (e o Sidney me apontou o quanto isso me foi inspirado pelo Kant mencionado por Foucault), aberto seus olhos para o fora, para o redor de si.

“Tomate” tem músicas sobre moradores de rua (“No Meio da Rua”), sobre leões de chácara (“Leão”), sobre relação de mãe com filha (“Amanhã é 23”), e inclusive uma música que simboliza essa maioridade, com um tema tão prosaico que parece estar defendendo a simples vontade de tornar qualquer coisa tema de uma canção: a faixa-título “Tomate”.

Então: essa vontade é que é o importante. Algumas das faixas nem são tão boas. E há outras mais tradicionais na temática. Mas existe essa vontade, e pelo resultado a banda parece dizer “Não preciso mais ficar fincando pé em definir quem eu sou. Seja o que eu for, isso vai aparecer naturalmente quando eu falar sobre as coisas mais diversas”

É bom deixar claro que álbuns assim não são conceituais. Talvez se possa dizer que são “meta-conceituais”, porque o que une cada música às outras é uma disposição, não um conceito. Uma disposição que acaba mostrando o que é o estilo da banda, mesmo sem querer. Quanto mais se fala de coisas diferentes, mais o que é realmente a banda, apenas a banda, se manifesta...

Depois de fixado o conceito (da disposição), pensei em outros álbuns que me passassem uma impressão semelhante. Logo de cara lembrei do “Cabeça Dinossauro” dos Titãs, falando de igreja, família, polícia, salário – em reggaes, hardcores, funks.

Outro ponto a acrescentar, portanto: o “falar sobre” não precisa ser só com a letra. Usar a fôrma de determinado ritmo ou estilo musical também é se aventurar em outros contextos, também é sair de si.

Aí pensei nos discos estrangeiros, e dessa possibilidade de profusão de estilos evocados. “The Head on The Door”, do Cure, é assim. Tem faixa espanhola, japonesa, “extraterrestre” ("Six Different Ways" é a única faixa de compasso composto do Cure, pelo que eu saiba), funkeada, e uma hors-concours que eu coloco no álbum porque tem o mesmo clima e foi feita na mesma época: “A Few Hours After This”, feita com tutti orquestral.

Outro álbum de maioridade típico é o “Dark Side of the Moon”, do Floyd. Após a crise de identidade de levar a banda sem o Syd Barrett, é como se, à distância astronômica sugerida no título, eles olhassem toda a humanidade e as suas principais questões: a guerra em uma faixa, o dinheiro em outra, o tempo, o aconchego... e a maturidade deu confiança para uma nova visão da própria alienação mental, com “Brain Damage”. A coda final, “Eclipse”, explicita o projeto, pois fala de absolutamente tudo.

Deixo agora o conceito pra quem quiser aplica-lo a outros álbuns de outras bandas. Qual seria o álbum da maioridade dos Beatles? Dos Stones? Do Clash?

Agora caiu a ficha que eu comecei falando do livro do Foucault, que EVIDENTEMENTE proporciona reflexões muito mais produtivas e interessantes que essa. Por favor, façam vista grossa quanto a esse detalhe. 

Por Lois Lancaster, um cara do RJ que faz música, frases e imagens

Nenhum comentário:

Postar um comentário